Era uma tarde de domingo e eu havia passado na casa de Rick para tirarmos fotografias no Sumaúma. Essa entrevista não foi premeditada. Eu lia pra ele a entrevista de Pablo Neruda feita por Clarice Lispector, e meio assim, meio ao acaso, comecei a lhe fazer perguntas, e a partir das respostas, achei que daria um bom texto. Porque é meu dom captar poesia na boca das pessoas.
Rick é do tipo de pessoa que sussurra quando fala e quando escreve, é dono de uma sutileza incrível, e um olhar mágico. Rick que eu não imagino falando um "Vá tomar no Cu" intenso, Rick que fala palavrão escondido, Rick que ama escondido, Rick que também ama a luz do sol, Rick que se atira, Rick que se joga, Rick de visão, Rick cego, Rick no escuro, Rick sem graça, Rick areia e pó.
Eis o homem!
-O que tu escreve te agrada?
-Agrada sempre porque nunca está pronto.
-Tu se considera um poeta?
Ele parou em pausa, abaixou a cabeça e comentou: Pôxa, você me pegou. Ele foi falando como que se não tivesse a certeza de nada, como que se tivesse aprendendo a andar, ou a falar.
-Não... aliás... sou tão poeta quanto fotógrafo, quanto desenhista, quanto qualquer coisa. Nada me impede de fazê-lo.
-O que te impede? É uma pergunta sem mais porquês, porque é para ser assim.
-Eu estava mesmo esperando o resto.
Rick se consulta em segredo todo tempo, e eu o observo pelo buraco da fechadura, e ele parece ser tão bonito visto pela fechadura da casa.
-A falta da quarta dimensão. Ou então (você poderia escrever assim) não tem nada que eu queira fazer de verdade.
-E o que você quer fazer Rick?
-Isso tá na entrevista?
-Sim.
-Nada. (Logo após de uma escapulida de sopro profundo). Por isso que é bom não pensar muito. Vontade sempre acaba com gosto de obrigação; se você parar para pensar, ninguém quer fazer nada. É como um gato miando; você dá leite, comida, carinho, mas só sabe que ele ta miando.
-O que é angústia?
-O que é angustia...? Existem boas metáforas pra isso...
-Não quero metáforas, quero a sua resposta nua, como a angústia.
-Acho que é... A gota que vai fazer o copo transbordar.
-Isso não é uma metáfora?
- Na verdade, a minha resposta é: existem boas metáforas pra isso.
Conversamos um pouco, eu contei pra ele algumas histórias de olhos caídos e sensações, sensações minhas que viraram contos, citei um texto do Guilherme Muzulon que fala da gota que transborda o copo d´agua, e disse pra ele que eu gostaria de explodir em catarse. Como no texto abaixo:
"E eu e todo o mundo deveríamos ser
Como água
Que jogada no copo
Sobe, sobe, sobe, sobe até as alturas
Sempre achando a liberdade
E que derramada no chão
Vai se espalhando profusa no vácuo..."
Rick estava com sono e nós dois estavámos com fome, mas ainda sorria entre um bocejo e outro. Prolongamos nossa conversa e acabamos por falar de coisas completamente diferentes, ele me alertou.
-Talvez sejam apenas pontos de vista. Voltemos para a entrevista, antes de nos perdermos um do outro por caminhos turvos.
-O que você entende por se sentir, Rafa?
Agora é minha vez de consultar meu silêncio.
-Ontem à noite, a minha ex-namorada me contava dos seus amores e tragédias. Ela me falou que um dos seus amores, talvez o mais verdadeiro, era como eu. Ele quando fazia o que não tinha vontade, gritava: Arrudiai-vos o mundo!
-Cinthia disse isso?
-Disse. E eu me senti cansado no momento... talvez eu tenha entendido de outra forma o que ela quis me dizer, não sei.
-Eu entendi da mesma forma que você. O que eu entendo por me sentir, é como uma crise de esquizofrênia, é como que se eu entrasse em contato com cada parte do meu corpo, é como que se todos os meus sentidos se aguçacem, e essa é uma sensação terrivel.
-Terrivel?
-É estar muito conectado à carne, e a este mundo.
-Não seria o contrário?
-Não. Não seria.
-Eu acho que eu nunca me senti de verdade... (Olhar perdido no céu...)
-Talvez sim. Do seu modo. (Ponho flores em sua boca.)
-Você pretende escrever um livro?
-Pretendia. Hoje em dia, não sei.
-Por quê?
-Sou preguiçoso, egoísta e indisciplinado.
Eu pergunto a ele porqê ele escreve, ele me diz que essa é uma pergunta indiscreta, eu pergunto por quê. Ele me diz que é como uma mania singular, e uma criança curiosa pergunta com uma inocência cruel o porquê do toc ou mania, deixando as pessoas desconcertadas.
-Eu sou uma criança curiosa.
-É, eu sei. E cruel.
Uma certa moça sempre engole a mão quando acaba de falar. Seria tenso se você olhasse para os olhos dela, e perguntasse porque ela engole a mão quando fala. Seria engraçado, Rick, até seria... Ele me responde a pergunta, com uma meia verdade.
-Escrevo para tudo o que eu penso se tornar mais palpável.
Depois de alguns instantes, ele me responde com uma verdade inteira. "Escrevo para eu ler depois”. Eu apenas concordo.
-Quem é Deus?
-Eu não acho que Deus seja.
Há algumas respostas que não podem ser tocadas, e nunca foi meu hobby dar pérolas aos porcos.
-Como você descreve um ser humano mais completo possivel?
-Eu não acho que precise de muito para ser humano; ser humano não qualifica qualidade. Errar é humano? Consertar também é.
-E onde está o completo nisso tudo?
-Esta no gelo espiritual, na inécia não quebrada, no universo isolado, se isolado, lembra?
-Lembro. Como é uma mulher bonita para os seus olhos?
-Acho que seria... (Ele se enrrola nas imagens sem legendas) Uma mulher cuja beleza tocasse, ou toque, minha beleza interior.
Ah, porque uma hora dessas ele não é um passarinho?
-E essa linda mulher existe?
-Existem.
-Você faz poema sob encomenda Rique? Eu não consigo fazer.
-Eu já fiz. Não me peça!
-O papel é todo seu, escolha as palavras mais verdadeiras e faça o seu poema.
Não.
Amarga menos se comido cru, logo pela manhã.
-Escrever melhora a angustia de viver?
-Quem disse isso?
-Você concorda com quem disse? Perceba que eu tirei a interrogação e afirmei o que não é meu.
-Acho bem verdadeiro. Isso não basta?
-Sim.
-Ou... considero aplicável. Mas quem disse isso?
-Faço minhas as perguntas da Clarice Lispector, eu a afirmo. Acho que escrever melhora a angustia de viver. Pelo menos pra mim.
-Então. É aplicável... Você é amigo dos seus vizinhos, Rafa?
-Sim. De alguns.
-É de andar na casa deles?
-Não.
-Eu já fui. Até isso minha mãe tirou de mim, ela me afasta de todos os meus amigos, porque ela é medrosa. - inveja as botas do homem que passa - Ela prefere um vegetal vivo a um animal morto. Eu queria dizer isso pra você.
-Eu tenho dito Rique. Há muito que sei sobre você e não consigo falar, sou embaraçado nas palavras, como você. Qual foi a maior alegria que teve pelo fato de escrever?
-Acho que a alegria de "fazer você mesmo", sem o kit "Faça Você Mesmo".
-Como procede a criação de escrever, para você? Rola inspiração, ou flui como um rio correndo para o mar? Porque comigo é assim.
-Eu sou o iceberg esperando o aquecimento global; enquanto isso, vou suando em dias quentes.
-O que você quer dizer?
-Eu acho que já tenho tudo pronto dentro de mim, e vou soltando através de estímulos, como pipas, mas por enquanto está tudo congelado... ainda não veio aquela onda de calor lancinante.
-O que você tem para dar?
-Não tenho nada para dar, eu só tenho.
-Diga alguma coisa que me surpreenda.
-Alguma coisa que me surpreenda...
Rick é tão vago que eu achei que ele estava pensando na resposta, mas eu estava vindo com o cajú e ele já comia as castanhas. Ele me repetiu, não foi algo que me surpreendeu, faltou atenção da minha parte. Mas entrei em estado de graça.
-Você é verde-escuro, Rafa.
-Eu? Por quê?
-Porque sim. Que cor eu sou?
-Você não tem cor. De qual poema seu você mais gosta?
-No momento?
-Sim.
-Não sei, até ontem eu gostava de "Domingo de sol e chuva", talvez por causa do ultimo verso. "Ah! Quero devorar sonhos!"
-O que você deseja para você?
-Posso ser terrivelmente medíocre e honesto na minha resposta?
-Pode.
-Dinheiro. Dinheiro muito. Não é isso que move o mundo, Rafa?
-Não sei Rique, eu às vezes duvido, mas acredito que seja só um empurrão. O que é amor?
-Amar é querer bem.
-Como sua mãe lhe quer?
-Sim. Também. "Bem" é uma coisa muito pessoal. Amar é querer bem e só, sabe? Apartir do "querer bem" você entende o que é certo. É comer...
-Você fala isso porque sente fome?
-Outro dia, uma gata teve três filhotes, e devorou dois; por quê? Seria pelo fato de que foram corrompidos em sua essência? Se fosse pelo modo de estranhar, ele devoraria qualquer gato. Entendi tudo como um impulso animal de devolve-los às suas entranhas, para que lá reencontrassem sua essência.
Um silêncio enquanto escrevo. Ele me pergunta:
-Você está escrevendo isso tudo?
-Sim.
-Nossa! Só assim para ter algo meu escrito em cinco folhas!
-Não estou escrevendo bobagens. Você já sofreu muito por amor?
-Muito? Não.
-Você já sofreu por amor?
-Amor romântico já. Acho que o amor romântico é a única coisa que faz a gente viver sem pensar. É um amor idiota, porque é mal explicado. E você, Rafa? Já sofreu por amor?
Silêncio profundo. Os meus olhos caem.
-Você está quieto porque está pensando? Porque não sabe? Ou porque ainda vai me responder com qualquer coisa?
-As três alternativas.
-Eu sempre tive vontade de te perguntar.
-Não sei se sofro de amor, talvez eu sofra por falta de amor romântico, talvez eu sofra por quem me ama e não é correspondido à altura. Eu odeio quem chora por mim; não me acho bom o bastante para ninguem sofrer por mim. E nem gosto dos amores unilaterais, não tenho tempo. Eu tentei Belas Artes e perdi no teste de aptidão. Rique, porque você existe?
-Eu não sei porque Ricardo está aqui.
-Eu talvez saiba.
-Por quê?
-Para me ajudar, de uma certa forma, pois sou uma colcha de retalhos. Para dar sentindo a esse momento. É isso. E nem sei se é só.
-Eu gostaria de tirar melecas do teu nariz, mas sei que eu não posso!
Rimos!
-Rick. Quer me definir em palavras?
-Não. Estou perto demais.
Enfim. Ele me contou um segredo.
4 comentários:
Tinha que ser ele, ele que é dotado de toda pureza e energia da vida, ele que é simples e mágico...Ele que é a perfeição das cores, a perfeição do dia e da noite. Ele é uma estrelinha que brilha minha vida.
Rick Je t'aime.
Hmm... Muito bom, admiro o modo como escreve!
Porque é meu dom captar poesia na boca das pessoas.
plas plás...
sem nada a acrescentar!
só palmas...
Deu trabalho pra ler xD
Mais valeu mesmo apena
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