quinta-feira, 28 de junho de 2007
Made in China
Socorro.
Ela era tão forte, tão intensa, que descrevo a força muda dela como um despacho de macumba numa esquina, numa mera esquina, numa esquina relis, numa relis esquina, locupletava tudo e todos. Esse tipo de amor estraga.
Ela amava o cara bacana chamado Leonardo, Leonardo não era intenso, não vale apena dizer que, Leonardo não era tão intenso quanto ela, não, Leonardo não era intenso.
Pelo contrário, ele era sossegado, dono de uma pousado no coração de São Paulo, e outra no interior de Minas Geraes. Mas o verdadeiro pouso de Leonardo está nos ombros de Socorro dos Prazeres. Mulher lasciva, tão pura e honesta como uma pré-rafaelita, como se não bastasse carregar nos ombros o marido, carregava também o nome perfeito para ser mártir. Cheio, como tudo que ela pensa.
Ele encontra nela o equilibrio e vice-versa, é um casal, normal desses tantos que se exibem por aí em festas cheios de cicutas pelos cantos, burgueses, depultados, madames, marinhas e madonnas.
Ela enchia uma festa, ela inundava olhos, ela movia os rostos na direção que passava, as mulheres morriam, os homens amavam, e ela nem aí, maravilhosa no seu vestido rosa, sincera com a sua sensibilidade.
É aquela velha estória: O mais forte pisa no mais fraco, e o mais fraco pisa no mais fraco que ele. Era assim porque era desse jeito.
Socorro não era feliz, apesar de ser bela, Que comparação tola essa, que ideia a minha. Que se foda a beleza! Socorro não a suportava.
Tinha dias que o Leonardo não aguentava tanta intensidade, ela era como o sol, um astro rei, que por ser astro ganhou o cargo de também ser dia. E como toda glória vem embalada em danação, segundo os deuses invejosos que apreciam grandes quedas. Era assim com Socorro dos Prazeres.
Ninguem conseguia encará-la por muito tempo, a presença dela queimava as pessoas, quando não cegava.
Leonardo era uma estrelhinha calma e brilhante no meio de tantas outras. Socorro lembra, numa mesa de bar na rua da Gávea, numa rodada de shopp e amigos, todos sorrisonhos, esbanjando etilismo barato. ela comenta que o Leonardo quando brigava com ela, quando os dois discutiam por alguma razão, ele via nela a Medeia.
Seria realmente a verdadeira imagem de Socorro?
Leonardo sorri sem graça e escapoli no banheiro. Mais tarde, no quarto, ele diz que não gostou do comentário, que era algo particular, desculpinhas e beijos.
Socorro... Socorro... Sem sono, nem bocejo, Leonardo repetia o nome da amada como numa prece.
Socorro dos Prazeres é um nome tão agressivo.
Na verdade é um paradoxo.
É um pedido de socorro, quase uma súplica.
É um desespero. Um grito de Van Gogh.
Prazeres me lembra fruta cítrica e banho quente.
Fruta e cachoeira, banho quente me lembra tristeza.
Socorro é um nome pobre.
Dos Prazeres equilibra, me faz virar santa nordestina.
É verdade... Não havia pensado nisso.
Boa noite.
O sono havia chegado para Socorro numa carruagem diferente, mas Leonardo não tinha sono, nem asas, dormia quando tentava, todo encolhido na cama de casal do lado da esposa, encolhia-se com medo de acordá-la, com medo de tocá-la e acabar libertando volupias indesejáveis, tão agora, aprisionada em mente. Leonardo pensa que deva existir no mínimo dez pessoas intensas em cada país. Socorro era uma delas, ela enchia uma cama, fazendo-o dormir no canto da cama,quando senão no sofá da sala, com a desculpa esfarrapada de que estava assistindo tv.
Leonardo tem uma amante, e eu não o condeno, porque ele e a história precisava de uma válvula de escape, para seguir, como num autorama em que ninguem sangra, eu criei uma amante para ele, Leonardo fode com a burrice todos os sábados, no fim dos dias uteis.
O fraco pisa no mais fraco que ele. Voltava pra casa vitorioso, beijava a mulher que usava um conjunto de vitoriana, tomava café sentindo o prazer nos lábios de ter o corpo e o cheiro de outra no seu corpo, sentia o escroto prazer de dividir esse cheiro feminino com a esposa, na hora do sexo como na hora do almoço. Sentia-se vitorioso por saber que a enganava, por saber que a traía, sentia-se estupidamente grande!
Mas o que ele não sabia era que Socorro também sabia, ele não sabe que eu tenho cartas na manga, que eu jogo sempre dos dois lados. Ele pensa que eu sou seu amigo. Aceite a verdade de que todo mundo é um pouco falso!
Ninguem fala tudo o que pensa, nem eu, que falo pouco, por problemas de que quando eu falo demais o interior do meu nariz seca e a palma da minha mão formiga. Por isso também escrevo, mas nem sempre escrevo tudo o que penso, tenho que largar mão da poesia.
Mas a culpa não é toda minha, nem fui eu que contei sobre a traição, é que antes de escrever que Socorro sabia que era uma mulher traída, ela já era uma mulher, e eu a criei intensa, com um fluxo violento de menstruação, como a de todas as mulheres fortes. Socorro era uma das dez.
Ela respeita sutilezas e aprecia nuances, ela descobriu por sí só, ela descobriu, talvez, sei lá, por causa de um bobo olhar trocado numa festa.
Seus olhos estão molhados.
Deve ser porque eu estou chorando por dentro.
Que bonito isso. Mas não, acho que é só sono mesmo.
É. Pode ser...
É. É isso.
É uma estória de um tipo inapreciável de amor que estraga.
Gim e Rum.
Devaneio n° 01
Com o tempo leitores, caros e baratos amigos, vejam bem, com o tempo vocês vão me ler sem tropeçar.
"Me ler", frase solta né? Tudo é costume, até quem sai da depressão sente saudade dela.
Eu tenho medo da intensidade, do pouco sucesso que tenho, do muito que terei, assim espero. é o que todo mundo que escreve almeja! ganhar dinheiro com o que escreve.
Um dia, será cool gostar de mim, tomar no cool ninguem quer.
Mas em relação ao sucesso, tenho medo de ficar soberbo, ressalte em suas memórias que há crueldade em todo ser humano. Eu mesmo, as vezes gosto de cuspir na cabeça das pessoas.
Desconhecidos me chamam de gênio, dizem que sou seu escritor predileto, desconhecidos choram comigo, eu que não tenho nem postura, terei que inventar uma?
Ah não, nem quero, sou preguiçoso demais para fingir.
Prefiro guardar a lisonja, e convidá-los para tomar um shopp comigo.
Tenho medo da soberba, o mesmo tanto que Deivide tem do "achismo". Eu tenho medo de parecer falso.
E o que é o poeta então? Mas não é não, na verdade, quando tudo um dia fizer efeito, tambores rufando em meu peito, confetes e serpentinas em meu cabelo, auditórios e palmas para Dom Quixote, que ele merece! Luzes artificiais, maquinas fotograficas que trancafia as pessoas num só gesto. E puf!
O que eu vou querer depois?
Antes, quando eu mal escrevia, ou quando escrevia mal, não pensava em lucrar com as minhas desgraças, a quem interessaria? Estou cheio das sagas, de estórias longas, as pessoas gostam de grandes estórias...
Serei um guardador de contos! Ser poeta é tentar ser um pouco falso, não dá para se esconder atrás da poesia, é você ali, é você ali na prateleira da livraria.
Alguns textos meus valem o preço de uma pinga, ou de uma carteira de cigarro_Deivide que o diga_ mas não liguei tanto para isso, aquele texto que ele vendeu valia dois reais mesmo, tava bem xôxo.
Ele precisava beber, e eu queria fumar.
O foda foi ler para o pulha, que por sinal, era prefeito da cidade. ou algo do meio politico...
Um dia, talvez, eu seja um mediocre. Vou deixar de escrever para mim, e vou escrever as coisas que as pessoas gostariam de ler.
Um dia, talvez, eu não seja nada. Leia em voz alta esse texto e me chame de tolo sonhador.
Um dia, talvez, estarei sozinho, mas com cada ex-amigo meu guardando uma edição ilegal do meu livro legal nas profundezas da gavetas.
Um dia, talvez o dia não chegue.
Talvez nada aconteça. ou talvez, tudo.
E Viva as hipóteses!
Olha, tenho um poema bonito que fiz na página de ontem, numa manhã manteiga. Eu gosto tanto dele que logo irei enjoar.
Como as coisas que eu amo.
O Sonho.
Ô flor, vou te contar a bateria de sonhos inexplicáveis que eu tive. Tu escuta, mesmo sendo eles inexplicáveis?
Ô flor, eu estava bêbado, não teria como sonhar com cisnes.
Mas eu sonhei. Eu sempre sonho muito quando durmo no chão.
Ei. você ainda está aí?
Pois escute enquanto ainda há tempo, na verdade, estou te enrrolando... É. você sabe.
Eram momentos que ainda irão passar. Eu sonhei com o amanhã, não futuramente bom, no caso, o hoje mais ou menos.
Nada do que eu sonhei se realizou.
Tudo bem pra você?
Tomei vários sustos, tomei vários tapas, me embriaguei de água potável, quebrei copos, invadi geladeiras, roubei cigarros e fui dormir.
O sonho era um filme psicodélico, eu era uma super-8.
Sonhei com o hoje e acordei com o hálito amargo do ontem torpe, ressaca moral é uma das piores ressacas. O vento nessas bandas de cá produz musica, seria bonito se eu ficasse mais tempo, mas as bandas de cá não é minha, o vento das bandas de cá não me pertence. Só o sonho, só o sonho é minha pantera.
Ô flor, o sonho acabou. E eu te acho meio pálida, você me diz que não tem se alimentado direito, eu também.
Aproveite o tempo minha flor, enquanto há.
Vai pra rua, porque vai chuver.
Tire uma foto para a eternidade
O homem que tocava flauta
Os bons da cabeça.
quarta-feira, 6 de junho de 2007
Netinho.
Arnaldo neto. Netinho.
O meu netinho.
Menino buliçoso, filho de pai belicoso.
A mãe tem bulimia.
Eu tinha uma Cannon. E ele me via.
-Da pra ver o mundo vô?
-O mundo é vasto e grande menino!
-Grande, como o tio Gabo?
-Mais rechonchudo.
-Gorda como a tia Velha?
-Hum... Um pouco mais.
-Mas com i, ou, mas sem i?
-Como?
-Porque se for, mas com i, é grande e vasto, como o tio Gabo. Agora se for, mas sem i, é gorda e palpiteira como a tia Velha.
-Entendo... Você ta muito esperto menino. Muito esperto para a sua idade.
-O senhor também vô, é muito esperto para a sua idade.
-Hahahahaha... Mas seu moleque danado...
-Mas é, mas com i, ou, mas sem i?
-Mais. Com i.
-Mas seu moleque danado, foi o com i, ou sem i?
-Sem o i.
-Entendo... Sabe vô, eu não queria crescer, queria ser para sempre criança.
-Não? E por que não?
-Vocês, gente grande se acham grande demais.
-Grande, como o tio Gabo?
-Um pouco maior.
-...
-Não tem uma forma que me faça ser para sempre criança?
-Tem sim. E ela está dentro de você, é só procurar que você encontra... É um pouco complicado de achar, mas com o crescimento você encontrará.
-Tira uma foto minha vô!
-Claro! Humm... Vai ali, senta ali perto daquele muro, põe as mãozinhas no rosto, assim... E faz uma cara de... Uma cara de triste!
-...
-Não, não, não é para me dar língua! E nem fazer careta! É triste menino.
-...
-Hahahahaha. Aí você ta enfezado, que carinha feia! Conheço essa cara. É igualzinha a cara que você faz quando eu te mando tomar banho.
-...
-Tapando o rosto com as mãos? Que novidade é essa menino? Hahahaha.
-...
-Sorrindo? Mas eu falei um rostinho de menino triste.
-É que eu não sei como é ser triste.
-Ah... Meu deus é verdade... Esqueci, esqueci que você é uma criança.
-Tchau vô! Vou brincar!
Saiu espalhafatoso atrás da pipa e me deixou sem sabor.
Um retrato de corpo inteiro de Rick Van Pelt ou Entrevista trovoada.
Era uma tarde de domingo e eu havia passado na casa de Rick para tirarmos fotografias no Sumaúma. Essa entrevista não foi premeditada. Eu lia pra ele a entrevista de Pablo Neruda feita por Clarice Lispector, e meio assim, meio ao acaso, comecei a lhe fazer perguntas, e a partir das respostas, achei que daria um bom texto. Porque é meu dom captar poesia na boca das pessoas.
Rick é do tipo de pessoa que sussurra quando fala e quando escreve, é dono de uma sutileza incrível, e um olhar mágico. Rick que eu não imagino falando um "Vá tomar no Cu" intenso, Rick que fala palavrão escondido, Rick que ama escondido, Rick que também ama a luz do sol, Rick que se atira, Rick que se joga, Rick de visão, Rick cego, Rick no escuro, Rick sem graça, Rick areia e pó.
Eis o homem!
-O que tu escreve te agrada?
-Agrada sempre porque nunca está pronto.
-Tu se considera um poeta?
Ele parou em pausa, abaixou a cabeça e comentou: Pôxa, você me pegou. Ele foi falando como que se não tivesse a certeza de nada, como que se tivesse aprendendo a andar, ou a falar.
-Não... aliás... sou tão poeta quanto fotógrafo, quanto desenhista, quanto qualquer coisa. Nada me impede de fazê-lo.
-O que te impede? É uma pergunta sem mais porquês, porque é para ser assim.
-Eu estava mesmo esperando o resto.
Rick se consulta em segredo todo tempo, e eu o observo pelo buraco da fechadura, e ele parece ser tão bonito visto pela fechadura da casa.
-A falta da quarta dimensão. Ou então (você poderia escrever assim) não tem nada que eu queira fazer de verdade.
-E o que você quer fazer Rick?
-Isso tá na entrevista?
-Sim.
-Nada. (Logo após de uma escapulida de sopro profundo). Por isso que é bom não pensar muito. Vontade sempre acaba com gosto de obrigação; se você parar para pensar, ninguém quer fazer nada. É como um gato miando; você dá leite, comida, carinho, mas só sabe que ele ta miando.
-O que é angústia?
-O que é angustia...? Existem boas metáforas pra isso...
-Não quero metáforas, quero a sua resposta nua, como a angústia.
-Acho que é... A gota que vai fazer o copo transbordar.
-Isso não é uma metáfora?
- Na verdade, a minha resposta é: existem boas metáforas pra isso.
Conversamos um pouco, eu contei pra ele algumas histórias de olhos caídos e sensações, sensações minhas que viraram contos, citei um texto do Guilherme Muzulon que fala da gota que transborda o copo d´agua, e disse pra ele que eu gostaria de explodir em catarse. Como no texto abaixo:
"E eu e todo o mundo deveríamos ser
Como água
Que jogada no copo
Sobe, sobe, sobe, sobe até as alturas
Sempre achando a liberdade
E que derramada no chão
Vai se espalhando profusa no vácuo..."
Rick estava com sono e nós dois estavámos com fome, mas ainda sorria entre um bocejo e outro. Prolongamos nossa conversa e acabamos por falar de coisas completamente diferentes, ele me alertou.
-Talvez sejam apenas pontos de vista. Voltemos para a entrevista, antes de nos perdermos um do outro por caminhos turvos.
-O que você entende por se sentir, Rafa?
Agora é minha vez de consultar meu silêncio.
-Ontem à noite, a minha ex-namorada me contava dos seus amores e tragédias. Ela me falou que um dos seus amores, talvez o mais verdadeiro, era como eu. Ele quando fazia o que não tinha vontade, gritava: Arrudiai-vos o mundo!
-Cinthia disse isso?
-Disse. E eu me senti cansado no momento... talvez eu tenha entendido de outra forma o que ela quis me dizer, não sei.
-Eu entendi da mesma forma que você. O que eu entendo por me sentir, é como uma crise de esquizofrênia, é como que se eu entrasse em contato com cada parte do meu corpo, é como que se todos os meus sentidos se aguçacem, e essa é uma sensação terrivel.
-Terrivel?
-É estar muito conectado à carne, e a este mundo.
-Não seria o contrário?
-Não. Não seria.
-Eu acho que eu nunca me senti de verdade... (Olhar perdido no céu...)
-Talvez sim. Do seu modo. (Ponho flores em sua boca.)
-Você pretende escrever um livro?
-Pretendia. Hoje em dia, não sei.
-Por quê?
-Sou preguiçoso, egoísta e indisciplinado.
Eu pergunto a ele porqê ele escreve, ele me diz que essa é uma pergunta indiscreta, eu pergunto por quê. Ele me diz que é como uma mania singular, e uma criança curiosa pergunta com uma inocência cruel o porquê do toc ou mania, deixando as pessoas desconcertadas.
-Eu sou uma criança curiosa.
-É, eu sei. E cruel.
Uma certa moça sempre engole a mão quando acaba de falar. Seria tenso se você olhasse para os olhos dela, e perguntasse porque ela engole a mão quando fala. Seria engraçado, Rick, até seria... Ele me responde a pergunta, com uma meia verdade.
-Escrevo para tudo o que eu penso se tornar mais palpável.
Depois de alguns instantes, ele me responde com uma verdade inteira. "Escrevo para eu ler depois”. Eu apenas concordo.
-Quem é Deus?
-Eu não acho que Deus seja.
Há algumas respostas que não podem ser tocadas, e nunca foi meu hobby dar pérolas aos porcos.
-Como você descreve um ser humano mais completo possivel?
-Eu não acho que precise de muito para ser humano; ser humano não qualifica qualidade. Errar é humano? Consertar também é.
-E onde está o completo nisso tudo?
-Esta no gelo espiritual, na inécia não quebrada, no universo isolado, se isolado, lembra?
-Lembro. Como é uma mulher bonita para os seus olhos?
-Acho que seria... (Ele se enrrola nas imagens sem legendas) Uma mulher cuja beleza tocasse, ou toque, minha beleza interior.
Ah, porque uma hora dessas ele não é um passarinho?
-E essa linda mulher existe?
-Existem.
-Você faz poema sob encomenda Rique? Eu não consigo fazer.
-Eu já fiz. Não me peça!
-O papel é todo seu, escolha as palavras mais verdadeiras e faça o seu poema.
Não.
Amarga menos se comido cru, logo pela manhã.
-Escrever melhora a angustia de viver?
-Quem disse isso?
-Você concorda com quem disse? Perceba que eu tirei a interrogação e afirmei o que não é meu.
-Acho bem verdadeiro. Isso não basta?
-Sim.
-Ou... considero aplicável. Mas quem disse isso?
-Faço minhas as perguntas da Clarice Lispector, eu a afirmo. Acho que escrever melhora a angustia de viver. Pelo menos pra mim.
-Então. É aplicável... Você é amigo dos seus vizinhos, Rafa?
-Sim. De alguns.
-É de andar na casa deles?
-Não.
-Eu já fui. Até isso minha mãe tirou de mim, ela me afasta de todos os meus amigos, porque ela é medrosa. - inveja as botas do homem que passa - Ela prefere um vegetal vivo a um animal morto. Eu queria dizer isso pra você.
-Eu tenho dito Rique. Há muito que sei sobre você e não consigo falar, sou embaraçado nas palavras, como você. Qual foi a maior alegria que teve pelo fato de escrever?
-Acho que a alegria de "fazer você mesmo", sem o kit "Faça Você Mesmo".
-Como procede a criação de escrever, para você? Rola inspiração, ou flui como um rio correndo para o mar? Porque comigo é assim.
-Eu sou o iceberg esperando o aquecimento global; enquanto isso, vou suando em dias quentes.
-O que você quer dizer?
-Eu acho que já tenho tudo pronto dentro de mim, e vou soltando através de estímulos, como pipas, mas por enquanto está tudo congelado... ainda não veio aquela onda de calor lancinante.
-O que você tem para dar?
-Não tenho nada para dar, eu só tenho.
-Diga alguma coisa que me surpreenda.
-Alguma coisa que me surpreenda...
Rick é tão vago que eu achei que ele estava pensando na resposta, mas eu estava vindo com o cajú e ele já comia as castanhas. Ele me repetiu, não foi algo que me surpreendeu, faltou atenção da minha parte. Mas entrei em estado de graça.
-Você é verde-escuro, Rafa.
-Eu? Por quê?
-Porque sim. Que cor eu sou?
-Você não tem cor. De qual poema seu você mais gosta?
-No momento?
-Sim.
-Não sei, até ontem eu gostava de "Domingo de sol e chuva", talvez por causa do ultimo verso. "Ah! Quero devorar sonhos!"
-O que você deseja para você?
-Posso ser terrivelmente medíocre e honesto na minha resposta?
-Pode.
-Dinheiro. Dinheiro muito. Não é isso que move o mundo, Rafa?
-Não sei Rique, eu às vezes duvido, mas acredito que seja só um empurrão. O que é amor?
-Amar é querer bem.
-Como sua mãe lhe quer?
-Sim. Também. "Bem" é uma coisa muito pessoal. Amar é querer bem e só, sabe? Apartir do "querer bem" você entende o que é certo. É comer...
-Você fala isso porque sente fome?
-Outro dia, uma gata teve três filhotes, e devorou dois; por quê? Seria pelo fato de que foram corrompidos em sua essência? Se fosse pelo modo de estranhar, ele devoraria qualquer gato. Entendi tudo como um impulso animal de devolve-los às suas entranhas, para que lá reencontrassem sua essência.
Um silêncio enquanto escrevo. Ele me pergunta:
-Você está escrevendo isso tudo?
-Sim.
-Nossa! Só assim para ter algo meu escrito em cinco folhas!
-Não estou escrevendo bobagens. Você já sofreu muito por amor?
-Muito? Não.
-Você já sofreu por amor?
-Amor romântico já. Acho que o amor romântico é a única coisa que faz a gente viver sem pensar. É um amor idiota, porque é mal explicado. E você, Rafa? Já sofreu por amor?
Silêncio profundo. Os meus olhos caem.
-Você está quieto porque está pensando? Porque não sabe? Ou porque ainda vai me responder com qualquer coisa?
-As três alternativas.
-Eu sempre tive vontade de te perguntar.
-Não sei se sofro de amor, talvez eu sofra por falta de amor romântico, talvez eu sofra por quem me ama e não é correspondido à altura. Eu odeio quem chora por mim; não me acho bom o bastante para ninguem sofrer por mim. E nem gosto dos amores unilaterais, não tenho tempo. Eu tentei Belas Artes e perdi no teste de aptidão. Rique, porque você existe?
-Eu não sei porque Ricardo está aqui.
-Eu talvez saiba.
-Por quê?
-Para me ajudar, de uma certa forma, pois sou uma colcha de retalhos. Para dar sentindo a esse momento. É isso. E nem sei se é só.
-Eu gostaria de tirar melecas do teu nariz, mas sei que eu não posso!
Rimos!
-Rick. Quer me definir em palavras?
-Não. Estou perto demais.
Enfim. Ele me contou um segredo.
Uma carta para God-boy.
Pois Zé.
pois.
Dom. diz:
zé
1989Guilherme diz:
ruela.
Dom. diz:
na rua vê ela.
1989Guilherme diz:
ela cantarola sem avental, debaixo do sol, onde brilha a luz da casa vinda da janela.
Dom. diz:
a lua entra no swetter da noite, e tudo esfria. e a janela implora chá de camomila.
1989Guilherme diz:
janelas pra que te quero e aí ela vibra a garganta "qual delas, qual delas, onde entrar, por onde passar?" e ela geme sob a penumbrosa noite e ela freme e muda de cor feito a um cameleão e ela treme e ela aguenta mais um pouco até que seu amigo rouco vem até seu decote lhe convidar...
Dom. diz:
quer pó com pacto? pq é nescessário gritar sem acordar o medo, e zé precisava dizer "eu te amo" com voz rouca, como se forçasse para parecer audivel, a rua teria que escutar. a rua... ela.
1989Guilherme diz:
Bip. mais um madrugada adentro/ Frescor sonolento que vem do riacho/ Veraneio ameno enrolado nos cachos dela/ e ela geme e ela treme, como se fosse a última das horas e ela freme e grita como se não tivesse mais como sair dali...
Dom. diz:
Ela não sabe gritar. Daqui, Dalí salvava a dor exposta na face dela, com aquarela carvão sob tela, tudo era de um charme tecnicollor, e ela andava levemente bêbada pela praia, como que se flutuasse...