quinta-feira, 11 de outubro de 2007

A lingua


Nos doze primeiros anos de vida do filho de Peixoto, o mataram e o assaram.
Foi retalhado numa tarde vindo da escola, numa tarde em que ele teria um encontro secreto, depois de retalhado e experimentado pelos homens, o filho de Peixoto foi costurado e empalhado com folhas de bananeira e servido numa bandeja com pedaços de mangas silvestres para a rainha Elizabeth na Inglaterra, que aprecia carne de véados.
Essa é uma das dores eternas do velho Peixoto, que hoje coleciona facas e rancores desde 75.
A campaínha tocou aguda, despertando Peixoto das suas obecessões. Era Lola que lhe trazia lírios.
-Para mim?
-Obrigado por me olhar ontem quando eu passei indiana para comprar pão. Esses lírios são para o senhor.
-São... bonitos, muito bonitos! Eu vou arrumar uma agua para depositá-los. Já sei, eu vou guardar ali a Helena guarda seu rosto no pé de jasmim.
-Não, não serve para olhar.
-E para que serve?
-Serve para provar. Ora seu Peixoto, sua casa é tão imensa! Eu me sinto um passarinho.
-Entre minha linda, entre.
-Posso mostrar ao senhor para que servem os lírios?
-Claro, fique a vontade.
Foi feita a amostra, a boquinha redonda e ousada de Lola chupou como uma abelha todo o sumo do lírio.
-E que gosto tem?
-Prove.
Lola deu dois passos a frente, conseguia se ver no espelha da finada Helena, mesmo ficando em linha reta do velho Peixoto, as bocas se encontraram tremulas, cansadas, perdidas... como dois imãs, os olhos de Lola registraram.
-Tem gosto de sangue esse lírio.
-Preciso ir, a minha mãe vai chegar!
E assim foi correndo porta a frente, deixando um espaço vazio. A noite, Lola toda aveludada pelo vácuo, e Peixoto ainda antônito, passa os dedos pela boca a procura de registrar a lembrança no tato, muitas e muitas vezes faria isso, como um cego, porque muitas e muitas vezes voltaria aquele instante, voltaria aos seus lábios para sentir o cheiro inebriante de Lola corrida, envolvida no swetter da noite.
Percebeu por uma questão de atenção no olhar, quando olhava para os dedos, com a intenção de vê-la ruivinha sardenta e sorridente entre os seus indicadores e fura-bolos. Mas se Lola é sangue, dar-se por satisfeito, porque foi isso que ele viu por entre os dedos, o sangue com gosto de lírio que saia da sua boca, profusão provocada por Lola, era sangue e desejo que saia com dor pelo pedaço da lingua arrancada a duro dente, era tão bom de se fazer doer que Peixoto só veio dar por falta do pedaço da sua lingua quando Lola não estava mais lá.
Mais tarde, numa hora precisa, numa dessas horas de comprimidos, parafusos, e diabétes, Peixoto se perguntará se foi apenas um sonho, ou se teria ele engolido sua própria lingua .
Aproveitando a noite de incertezas, Lola ta rezando para Deus abraçado com o seu boneco de voodoo, mais tarde, quando não chegar o sono, ficará então olhando compulsivamente para a lingua do Peixoto boiando num copo d´agua, em cima do criado-mudo, como a dentadura que não espera ter.
Porque aquilo sim era uma lingua digna de ser apreciada em noites insônes.

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