sábado, 21 de julho de 2007

Do romance que eu retalhei em contos.



Madruga de quarta-feira. Três e quarenta e duas da manhã.
Uma morte, pra ser mais exato, um homicídio, a noite é fria e feia, na falta de estrelas fica a penumbra, o isolamento dentro do carro que quebrou no caminho, para piorar chove, celular sem sinal, esse é o meu dia, desse do carro, prefere ficar molhado do que parado, enquanto mexe em qualquer coisa que faça o carro funcionar, pensa que as madrugadas chuvosas tem um quê de sombrio, chuva sem vento, apenas chuva, e apesar dela, no céu há centenas de urubus sobrevoando em círculos, nunca entendeu porque os urubus sobrevoam em círculos, de toda forma há sinal de carniça, ou de carnificina, podridão. Pronto. Gira a chave, o motor engasga, tenta novamente, engasga, ele já está ensopado, definitivamente esse é o meu dia, ou melhor, esse é o meu ano, o planeta saturno anda chateado comigo, gira a chave, o Ford treme, agora vai, engasga.
-Bosta!
Calma Salgado, calma, tenta de novo, a paciência faz o monge. Olha o motor mais uma vez, descobre a falha, é na bubina, tenta outra vez, gira a chave, o velho Ford treme, o motor faz barulho, o barulho que deixa Salgado feliz, o Ford pegou.
A equipe de Homicídios já está no local do crime, uma viela imunda onde dá abrigo a toda espécie de criatura noturna, morcegos, vermes, vira-latas, mutilados, corvos, homens-bicho, moscas-bicheiras e varejeiras, gatos, crianças, ratos, baratas, germes, misérias e pobreza. Um velho mendigo que falava com a sarjeta, e que não deixava os seus cinco filhos dormirem, pois ele berrava toda sua dor para a sua fiel confidente, foi ouvido com atenção por um dos policiais.
-O senhor sabe de alguma coisa? Como esse corpo veio parar no lixo?
-A única coisa que eu sei é que eu não sei de nada, não sei de nada, não vi nada, eu sou cego, eu sou mudo, eu sou surdo, pergunta a viela, ou então a sarjeta, eu não sei de nada, eu não sei de nada...
O farol ofuscante do velho Ford do detetive Salgado ilumina o rosto do mendigo e dos oficiais da milícia, alguns com capas, outros com guarda-chuvas, mas todos protegidos. Menos Salgado. E o mendigo. E os seus filhos. Parando o carro no meio de muitas viaturas com sirenes mudas e brilhantes. Desce do carro.
-Demorou detetive! (Dando um guarda-chuva a ele)-Houve um contratempo, o meu carro afogou. Mas vamos ao que interessa. O que houve?
-Um homicídio! Um corpo foi encontrado aqui nessa viela, no lixo, sete tiros no peito, e uma orelha arrancada.
-Pra variar. Ninguém sabe de nada?
-Não, só esse mendigo que mora aqui, mais ninguém. Eu já tentei de todas as formas arrancar alguma coisa dele, e não adianta, ele não sabe de nada, é maluco, não diz coisa com coisa.
-E quem fez a denuncia?
-Não quis se identificar.
Salgado tira do bolso do paletó ensopado, um Luck Stryke, acende enchendo o pulmão de fumaça.
-Cigarros?
-Não, obrigado, eu não fumo.
Fica alguns segundos segurando a fumaça no peito.
-Cadê o homem? Já retiraram do lixo?
-Sim senhor. Ele está ali.
Aponta para um corpo de um homem esguio, um pouco robusto, maltrapilho, cabelos desgrenhados, basicamente jeens, camiseta vermelha com o rosto do Che Guevara, moletom preto, e all star rasgado da mesma cor. O fotografo criminal com cara de sono e má vontade faz seu trabalho, tirando fotos em sua maquina estrangeira Minolta, disparando flashes numa dança de luzes e imagens lúdicas.
-Quanto tempo esse corpo está aqui?
-Não sabemos ainda, mas talvez... (Olha no relógio) 24h00 hs, um dia quem sabe.
-Aproximadamente 48h00 hs, dois dias quem sabe. Logo após a morte o corpo é invadido por seres necrófagos, moscas, besouros, pelo ciclo de vida, e habitat natural dos bichos, dá pra saber hora e local do crime, mas verifique isso com calma.
-Pode deixar senhor.
-Alguma identificação? Carteira de identidade?
-Está aqui, na carteira dele só tinha a identidade, camisinha, um Ice Kiss, algumas moedas, e uma foto de Jesus Cristo.
-Francisco Nazaré Dolstói. 22 anos.
-O que o senhor acha? (Salgado agacha-se, fitando o morto com os seus olhos de ave de rapina)-Olha, vou te falar... Se eu não soubesse que não existe mais ditadura, nem anistia, eu poderia jurar que isso era obra do demônio Médici contra um pobre comunista.

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