terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Artefatos diminutos

O RETORNO

Quando fui embora daquela cidade em que passei metade da minha vida levei comigo um ato heróico de mudar de vida. Pois todos estavam cansado de me ver caído na sarjeta, etc.
Agora eles irão querer o saldo, a mercadoria trazida, a colheita frutuosa dos novos ares.
E o que eu tenho a dizer? O que eu tenho a ofertar? Cadê a minha pick up prata?
E eu sei minha grande amiga, quando tomarmos um vinho você me contará dos seus gêmeos traquinhos, da febre que te pôs louca, do seu marido que não sai da loja e do tanto de trabalho que se acumula cada vez mais na faculdade de Arte, uma gigantesca estátua de lixo.

Abdiquei de muita coisa e fui em busca do Absoluto, sem olhar para trás com medo de virar estátua de sal. Agora é preciso que se apresente o legado, requererá de mim a sabedoria adquirida de tantos anos que estive fora.
Eu sei, ela falará muito, darei corda para me contar de seus amantes enquanto ganho tempo para inventar um perfeito protótipo de vida. Anos inuteis que eu tentarei desfarçar e num toque teatral ainda exibir o meu melhor e mais falso sorriso. Enquanto ela detalha e enquanto eu penso.
Recorrerei a circunlóquios e delongas até quando der, e quando não for mais possivel, inventarei mentiras envolvendo um livro de iconogravuras da Grecia que ganhei de um médico patologista.

"Sabe, fui para Grecia com um patologista podre de rico. Lá é um lugar perfeito para a tragédia ao ar livre, e... Foi lá que ele morreu."

Criativo, mas insidioso demais para o tranco.
Não alimento fuxicos e nem patrocino mexeriqueiros. Não vou mais temer, eu fiz o que pude. E o meu retorno a cidade será como as histórias que minha mãe contava quando eu era criança, para eu temer e sempre fazer a coisa certa e bondosa. Ela dizia assim: No dia do Juizo Final um enorme telão maior que esses de cinema tomará o céu e passará um filmezinho de todas as coisas horrendas que você fez, e o que é pior, todos irão assistir.

"Todo mundo pergunta por você, quando souberam que eu iria te encontrar quiseram que eu não esquece as novidades e que os contasse nos minimos detalhes."

Eis o meu filmezinho horrendo no telão do céu, em alta definição:

O soco que não devolvi, a mulher que não me amou, o filho que eu não tive, o vejame que paguei, o vestibular que eu não fiz, o livro que nunca termino de escrever, a falta de compaixão pelo próximo, o falso sarcedócio, minha tristeza, minha falha, as dificuldades com o meu intimo, a falta de dinheiro, o acidente, a clinica de reabilitação, os roubos, os arroubos, os credores do morro e todo desamor promocional.

Isso não é o mais nobre que eu tenho a oferecer, não é nenhuma folha de louros, nem nenhum colar havaiano. Mas é tudo que eu tenho pra dar de boas novas.
Fazer o quê.

Um comentário:

Isa Dora disse...

Ao menos você é sincero. Adoro isso. Se fosse eu, certamente omitiria o nada que eu fiz. Vai, nem é tão ruim assim...