terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Cinismo.


Eu sou vinte vezes mais inteligente que um vira-lata, mas naquele dia eu não percebi a expressão dela mudar quando eu cheguei, como uma tartaruga que se esconde no casco por alguma conviniência.
Aquele barrio de pólvora, ela, por si toda parecia com uma boca espumando, uma boca inteira espumando pelos cantos.
Assim que eu cheguei.
Nem percebi, me escapou da certeza perceber o momento em que ela abaixou os olhos para não ter que me olhar, e ficou naquela dancinha do desconserto, aquele tremendo mal estar, e ela mechendo no telefone celular com o desdém que só quem sabe usar merece ter.
Eu de pé, diante de duas moças, ora como sempre, procurei ser simpatico e natural, o mais natural possivel.
Ela não olhou pra minha cara, e daí? Até aí pode ser qualquer coisa, uma menstruação que ta para chegar, um dia ruim, ou um amor malfadado.
Mas mesmo assim eu me dano por não ter pego outro caminho, preciso me livrar desse cacoete que insiste em ficar, esse cacoete de nunca saber a hora de cair fora.
Saber a hora de ir embora é uma virtude, que poucos tem.
Foi uma sessão de hostilidades sob efeitos de ironias e até metaforas_ e eu não preciso disso. Não preciso de pessoas que se desfaça daquilo que eu tenho e do que eu sou.
E eu não me gabo, isso é puro cinismo, sárcasmo, entende?
Se eu passo e não te vejo é porque eu não falo com você.
Agora essa estória de arrogante, soberbo, bossal, maconheiro gabão... bicho, sai dessa que é chifre onde não tem.
Eu não preciso provar nada pra ninguém, eu não preciso me apegar desesperadamente a uma imagem visual em bom estado para exibir aos outros, não preciso, nem quero ter que mostrar para os outros que sou um cara legal merecedor de suas confianças.
Quem me conhece sabe que eu sou um cara legal, e isso pra mim é o que eu chamo de tudo.
Pra quê um milhão de amigos, Renato? Pra quê um milhão de irmãos? Hoje em dia ter dois olhos já é uma ostentação.
Aí ficou naquele slow motion sem birita, apostando todas as suas fichas na minha estima, sem saber ela que eu me amo. Ficou na minha frente caçando o meu ponto fraco como um rato caça um pedaço de bife.
É mais pra baixo amor...
Cuidado com os dentes, sim querida?
O cinismo é uma coisa que requer talento, e eu conheço gente que dá um show!
Já eu gaguejo, sou tedioso, esqueço as palavras certas, e quando estou de pé, eu não sei o que fazer com as mãos. Mas, apesar disso, eu tenho sacadas ótimas, e converso baixo, e não interrompo ninguém.
Ela também fala com descrição, mansa e hostil, como uma cobra.
-Você acha mesmo que você é melhor do que eu só porque você não bebe?
Ah, então a questão é a vida que eu levo não ser uma forma muito popular... é, ué. Eu cago e durmo como todo mundo. Só que sem revistinhas.
Eu bebo porque preciso lubrificar as conversas com gente chata.
Erámos três cinicos, cinico no sentido cruel mesmo da coisa, de conversar com palavras duras em voz de veludo, com a veemência fria de alguém que toma o veneno e esperar o outro morrer.
Eu não sei muito bem dos motivos de tantas rusgas. Sou tão inocente nessa estória quanto a inocência que eu tive ao parar pra conversar com quem me desdenhava, a inocência que há em você não perceber no primeiro ato o mal estar que faz trincar os dentes. A inocência que faz você agir naturalmente.
Mal estar tem cheiro de comida vencida, e por isso, nota-se logo.
É louco quando você descobre alguém que te odeia, porque odiar é juntar forças, e juntar forças pra mim só em situações especiais.
Bom pra ela que sente raiva.
Enquanto isso eu sinto um leve comichão.
uma coceirinha que você sente e já duvida se sentiu.

Um comentário:

Isa Dora disse...

Ah, eu adorei. Texto ótimo Dom.