quinta-feira, 5 de abril de 2007

O observador de Plácido.


Saco vazio não para em pé, as palavras de minha mãe saiam doce e nítida, como um morango. Corpo vazio também não para em pé, por isso vou longe, tomo chá mofado com água morna, purifico-me. Ainda vou longe... O que dizer sobre o jejum dos sarcedotes? Por que puro se encontra a sensação extrema? O nirvana.
Hoje eu recebi uma visita, um amigo de longa data que há muito tempo não via, a sujeira dos seus pés ainda estão marcados no tapete da entrada da minha casa, escrito "Bem vindo", ele sentou no meu sofá amarelo desmaiado, cruzou as pernas sem fim, acendeu seu Derby e fumou plácido. Sim! Ele dava jus ao nome, pelo menos só quando fumava. Plácido de Souza!
-Uma cerveja?
-Claro.
Despejei o liquido espumoso e amarelado cor de cabelo da vizinha ao lado no copo de vidro listrado, ele bebeu numa só golada, de vestígio ficou a espuminha da cerveja em seu bigode e um arrotinho discreto. Ele me falou de sua vida, de mudanças, de comportamento, de seu emprego novo, observar passarinhos deitado em sua rede, o observador de pássaros, eu achei graça, ele ficou serio, contrito em seu pensamento, e depois de uma longa pausa continuou a falar sobre o seu emprego novo, de como era divino analisar um pássaro pelo seu canto, adivinhava tudo, raça, cor, e imitava o canto num assobio bonito, olha aí! É falando que se lembra!
Plácido não lembrava do seu primeiro pássaro, agora ele sorriu, expandindo aqueles dentes tortos todo amarelado de nicotina e vinha, e a sua gargalhada era toda singular, era inibida, sarcástica, cobria a mão com a boca para ninguém notar seus dentes todos tortos e amarelados. Plácido era triste, seus olhos denunciavam. E estavam muito mais hoje, ele me dissera que se sentia deprimido ultimamente, desde a morte de sua esposa, tinha um semblante serio, conversava como que se discutia, a dor era como uma fruta podre, uma cabeça destrinchada, eu dizia a Plácido que não sabia lhe dar com ela.
-Com o tempo a gente aprende.
-Aprende, aprende, aprende.
-Quem falou?
Era o meu filho que estava sentado na escada desenhando, repetia as ultimas palavras de Plácido numa intensidade estranha.
-Não sabia que você tinha filho.
-E eu não sabia que você era observador de pássaros.
-O que há com ele?
Não há nada com ele, ele é o amor que eu consigo sentir, ele é tudo que se resume em amor, ele era o meu filho, meu pai, não há nada com ele, ele era apenas diferente dos outros garotos.
-Ah! Um esquizofrênico!
As palavras de Plácido saíram junto com a fumaça, irônica, preconceituosa, foda-se ele e suas palavras!
Estremeci por um segundo, um arrepio silencioso, uma mão abusiva e fria tocou minha nuca, um gosto ácido. Queria que ele fosse embora, mas não foi, grudou como um encosto em meus azulejos, não havia mais conversas, não havia mais clima. Duas horas depois ele se foi, trocamos idéias, mãos e digitais. Foi-se. Meu filho, da escada olhava constantemente para o relógio.
Tic... Tac... Tic... Tac...
-Ele já foi?
-Já filhão. O que houve com você?
-Não vê pai? Não sente? Olha as flores no jardim, elas estão murchas, as folhas secaram, e pode ver na cozinha, todas as frutas estão podres... E eu estou como elas.
Lembrou-me do filho que fui e do filho que tenho.
A energia murcha as flores, outras energias paira a alma, é por isso que quando ele vai a escola, eu fico rindo sozinho que nem bobo.

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