terça-feira, 19 de agosto de 2008

O assalto


Tem nicho de inspiração melhor do que a vida dos outros?
Dois fatos estranhos me ocorreram outro dia, estranho e ordinário devo dizer. Ser assaltado e assaltar é um fato que ocorre todos os dias com milhares de pessoas. E eu não estou livre de nada.
Desci uma ladeira monstruosa e fui dar no ponto de ônibus, sentei-me num banco vazio afastado de algumas pessoas que ali estavam. Um sujeito cadavérico, de pés descalços e imundos sentou-se ao meu lado, e após sentar-se eu percebi o saco plástico em sua cabeça, no meio de nós dois havia uma marmita ainda quente, uma marmita insossa que foi me dada pelo socialista do congresso que eu estava de gaiato, o homem cadavérico me pediu a marmita e eu dei sem hesitar, não estava com fome, tenho um dedo sujo de um bóia-fria, e como em qualquer lugar.
Minha linha de montagem difere, sou defeituoso e cresci errado como aqueles melões quadrados do Japão.
Dormi durante toda a palestra do congresso do UJS (União da Juventude Socialista) e não berrei em coro com os demais a letra sucumbida de Raul “Viva! Viva! Viva a sociedade socialista! E comunista!”.
Não foi descaso, nem é recalque, só não me via cantando daquele jeito às oito horas da manhã, quando na noite passada eu fui dormir as quedas, as seis.
Mais tarde, com a chegada do lusco-fusco e a escuridão que destacava a lua, corri para o ponto de ônibus para um som no Rio Vermelho, e para ser mais rápido atravessei a fila da marmita gritando “Acabou? Socializa porra!” e ganhei uma marmita, ora vejam só!
Três dias comendo aquela comida sempre igual, com muita sorte você pegava um filé de frango de vez em quando e pouco arroz e mais feijão, o que fazia espumar minha boca na verdade era o doce de banana, que era obviamente, comprada no supermercado mais próximo.
Voltando ao ponto e ao homem cadavérico que comeu, arrotou e ainda disse que a comida estava sem sal, lembrou-se do hospital, a comida era igualzinha, ele me disse e ainda acrescentou:
-Refeitório penitenciário, comida de hospital e orfanatos é tudo a mesma bosta!
Ele gostou da minha sandália, tocou no meu pé, resmungava, a abstinência era descrita nas mãos que não parava de esticar um elástico amarelo, para lá e para cá, tirou de sua trouxa uma garrafa de pinga, pela metade. Sorvia aos goles, depois batia com força no banco como uma pedra de dominó num tabuleiro.
Disse que iria pegar o primeiro ônibus que passasse, para qualquer lugar.
Eu e meu cacoete de não saber a hora certa de dar o fora, eu espero para ver. Sou bastante inocente até certo ponto, tenho um coração bom e cafona.
Ele se aproximou de mim a ponto de me fazer ficar mais esperto, ficou perto demais e me fitou olhando nos meus olhos, num estratagema de me distrair enquanto sua mão trabalhava nos bolsos à caçadora, do meu moletom aberto, foi falando que era HIV soropositivo enquanto sua mão ia para dar com o meu bolso, eu notei e olhei depressa.
Havia uma faca sem cabo posta na minha cintura. E ele sussurrou para eu ficar quietinho.
O susto me fez levantar depressa, e ele me segurou na ponta do casaco. Puxei com força e fui para o canto, perto das poucas pessoas dali. Ninguém desconfiava de nada, e eu morria de medo. Ele blasfemou e me mandou voltar, disse que não iria perder essa grana pra mim, fez do modo como se eu tivesse o roubado!
Olhei a monstruosa ladeira inclinada e pensei em voltar pianinho, correr dali. Mas pareceu que ele leu meus pensamentos ou pôde ouvir as batidas do meu coração e disse:
-Nem pense em sair daqui! Eu vou atrás de você onde for! Hoje vai ter sangue no asfalto! Hoje vai ter presunto! _Dizia isso raspando a faca no banco, sem pudor.
As pessoas em volta de mim não me passavam nenhuma confiança, estavam todos nem aí para mim, o máximo que iriam fazer era se afastar e gritar. Na ultima das hipóteses, chamar a policia, não havia policia por perto. E eu não tinha celular.
Ele se aproximou de mim com a sua trouxa e sua garrafa de pinga. Dei três passos para trás.
Ele me pediu dois reais. Mandei-o se foder, disse que já tinha dado a marmita para ele!
Ele sem mais delongas me atirou com fúria a garrafa de pinga, esquivei minha cabeçorra junto com todo meu corpo, quase me jogando ao chão, e a garrafa destinada a minha cabeça se espatifou em inúmeros vidrinhos na cabeça de alguém na pista de baixo. Um grito de dor ecoou, a senhora lá embaixo permaneceu em estado de síncope, e uma moça aflita começou a gritar desesperada, víamos tudo do viaduto de cima, o malandro aidético fugiu as pressas, quase correndo. Um homem, provavelmente o que acompanhava a mulher e a senhora tentou alcança-lo subindo correndo pista a cima, um torvelinho de gente se aglomerou em volta da senhora caída no chão em volta da poça de sangue.
E eu peguei_ completamente atônito. O primeiro ônibus que passou ainda ouvindo o alarido, do lugar com janela onde eu me encontrava.
Sem duvida
Havia sangue no asfalto e profecia na memória.


Outro dia me ocorreu outra faceta interessante.
Sempre, sempre os desmazelados da vida, os mendigos, as ralés.
Um amigo tocava violão num banco de praça, para um velho pinguço de trouxa obesa na mão, um velho de cara atarracada e cabelo até a nuca.
Um sujeito feio com um boné velho e russado na cabeça, um boné que eu prestei atenção à data de fabricação, e era de 1907. Deveria ter sido do seu tataravô. Ele era um gentil.
Esse meu amigo me chamou e me fez ficar para ouvir algumas musicas que ele compôs. O velho afetuoso do seu modo agreste, logo me fez sentar do seu lado, afastou a trouxa obesa e disse que ele era muito louco, mas que era da paz.
Me chamava de Harry. Me ofereceu sua comida. Macarrão sem molho, feijão, arroz, farinha e um pedaço de bife.
“Não, fique a vontade.” Eu disse.
O velho, que era conhecido como Coelho, se mostrou emocionado com as canções tocadas pelo violonista. Até lacrimejou. O abraçava com fervor, dava cascudinhos e conselhos. Volta e meia olhava pra mim.
-Fume Harry. Aqui é bicho doido, mas sou da paz! Fume Harry, fume! Daqui a pouco eu vou trazer um black and roll pra nós, ta ligado? O velho aqui consegue! E traz! Bota fé?
Nem esperou abrir minha boca, falou da mulher do hippie que estava na roda de viola, a chamou de feia e gorda, que ele merecia mulher mais bonita, que se ele fosse esse cara teria vergonha de estar com ela.
Na hora não entendi direito o infame porque não estava prestando atenção nele, equivoquei-me achando que ele falou que o hippie chamado Max tinha vergonha de comer no prato dele, e eu interpelei_ não em defesa das causas sentimentais e ideológicas de um hippie chamado Max, como se eu o conhecesse o bastante para saber se tinha ou não tinha nojo de comer no mesmo garfo que pousou os dentes podres e cariados de um velho pinguço, tão pouco ainda interpelei para aquebrantar o coração exausto de um judeu liquidado e assim fazê-lo sentir-se um ser humano limpo como quase todos os outros.
Não meus senhores, nada disso, não sou tão altruísta assim, disse e interpelo porque não suporto a soberba que o silêncio produz em situação dramática, disse porque no fundo não queria ser aquele que estava por fora, disse porque alguém teria que ter algo a dizer no final, disse isso para que pudessemos evoluir e não ser-mos liquidados pelos pensamentos, disse e interpelo porque para ganhar bônus eu tinha que ser um hipócrita.
Eu disse: Que porra de vergonha nenhuma, rapaz!
Ele me olhou assustado!
-Entenda Harry... Não to falando mal de ninguém não. Mas que ela é parece uma mongol parece sim.
Tive tempo de entender e ainda dizer.
-Eles se gostam, é isso que importa. Quem é você pra falar nada? Você não é nenhum exemplo de beleza.
-Eu sou feio, e sou gente boa, Harry. Só não sou menina, boneca. Eu gosto de mulher, ta ligado? Fique na sua.
-Isso tudo bem, o x da questão talvez, é saber se elas gostam de você.

O violonista da roda_ Dizem as más língua, anda meio pirado pelo thc, ele disse a mim fervoroso que via mais Jesus Cristo nesse mendigo do que em qualquer pastor, ou padre. _quando esse se retirou da roda para fazer qualquer coisa.
Disse que ele tinha um coração bom, e que Jesus às vezes se manifestava em mendigos e desmazelados nos minadouros e coretos de cidades pacatas.
Não sei não.
Se esse velho infame era Jesus Cristo, o Diabo sou eu.
Esperto demais, vivido demais, desconfiado demais. Tinha labuta, era um alcoólatra. Apenas afeiçou-se a ele com disposição. E nada mais. Isso não queria dizer que ele era uma pessoa boa, ele não era uma pessoa boa porque me ofereceu sua gororoba e afastou sua trouxa obesa para me sentar.
Quando o velho Coelho me pediu o favor de comprar uma pinga para a roda beber, ele agarrou no meu pescoço disfarçando um abraço e falou só para que eu possa ouvir.
-Veja lá, eu não sou idiota seu maricas, nunca abrace alguém como eu, cuidado com injeção no pescoço! Sacou Harry? Você é gente boa! Ce ta ligado, cê não é menino!
Vá lá! Vá lá trazer a cachaça pra gente beber!
Fingir não entender e fui buscar a água ardente com o dinheiro do velho.
O bobo da corte busca a água ardente para a roda; roda essa em que ele era a mão. Depara-se com a bodega fechada, pensa em voltar e lembra da injeção, era dia de maldade e por isso não volta, leva consigo o dinheiro do mendigo.
Saí à francesa antes da ultima sincopada triste do meu amigo violonista e dos fatos seguintes.
Não queria eu ser aquele que estava lá para contar.
O tanto que eu já sabia estava de muito bom tamanho.
Com a bufunfa catada do velho comprei uma promoção a preço módico.

Um comentário:

Juca Lordello disse...

Um dia é da caça. O outro do caçador.