quinta-feira, 23 de novembro de 2006

Da vez em que o meu amigo virou burguês


- Realmente, a burguesia lhe caiu como uma luva!

Eu falo isso pra ele sentado numa poltrona black estolfada, pondo em um copo bonito e detalhado uma dose de Jack Daniel´s.

-Você acha isso mesmo?!
-Claro! Você sempre teve uma pose de rico, mesmo sendo um proletário sofrido! Eu acho que é porque você lia boas coisas...

Passo os meus olhos invejosos ao redor da mansão, procurando um defeito se quer na vida que poderia ser minha, nada, nem uma meleca velha grudada na parede.
James foi o meu professor de teatro, dava aulas de português e matemática, ele amava o paradoxo!
Eu achava um saco ter que ser uma pessoa só, gostava de manifestar o meu pior lado, e fazia isso com as crianças da minha rua, passava com roupas pretas e cabelos desgrenhados, espinha na cara e falava sozinho.

O maluco da Vila.
Poucas que não corriam para dentro das suas casas quando eu passava, vinha receosas e cabreras me observar passar, alterando seus ouvidos para escutar o que eu tanto susurrava....
-Can you feel my love buzz... can you fell my love buzz...
-Psiu! Ele deve tá falando com o demo!
-Que lingua é essa?
-Alô!!! Demonista né idiota?!
-Ahnnn...
-Careta!!! Cadê a greta?!
-Tá no cú da mãe! Eu devia dizer isso.
Mas não. Prefiro sorrir pra eles.Não gosto de crianças, mas gosto da imaginação infantil. Eles se soltam, proliferam absurdos, é tudo a mais completa fantasia...
Ou não.

-Can you fell my love buzz...
-O quê?!
-Hãn? Nada. Tava aqui pensando...
-Uma hora dessas se o meu filho estivesse vivo, ele estaria voltando da faculdade.
-Eu sinto muito pelo o seu filho.
-Todos sentem não é mesmo?

Eu queria escutar alguma coisa alegre, não o silencio brutal daquela mansão que me parecia triste, taí. Triseza é o que tem de ruim nessa casa.Mas a tristeza é nescessária, nada que alguns goles de absinto não resolva.
Mas James não bebe, esse é o problema. Apenas ora.

-Porque você tem um bar se você não bebe?
-E quem disse que eu não bebo? Bebo sim, só que não como você... E também porque a minha mãe disse que era elegante.
-Se você tivesse casado com a crente, sua vida seria completamente diferente.
-Minha vida seria completamente diferente se eu não fizesse muita coisa...
-O crime por exemplo.
-Eu não quero falar sobre isso. Vamos ouvir algum som?
-Posso escolher?
-Claro.

Fui a procura de The Velvet Underground, mas só o que eu achei foi Jazz e Blues.

-Porra bicho, você não esculta mais rock n´roll?!
-Não. Rock n´roll é pra garoto como você... Agora só B.B King, Billie Roliday, Etta James... Esculte, você vai gostar.

Ponho o disco no mega som, e já vou logo me abtuando com as sonoridades lúdicas de Billie Roliday. James cantava e chorava olhando para o retrato do seu filho, aquela nostágia impiedosa dele já estava me dando asco, eu nuca vi James chorar, há não ser no enterro do filho, que morreu com quinze anos atropelado por um opala azul, aquilo tudo não fazia sentido pra mim, ele estava rico! O que mais ele queria?
Eu sei, ele é pai, mas ele sabe o que é perder e tirar alguem querido de outro alguem.

James e eu fomos abordados uma vez por dois homens magros e albinos, eles eram alemões. O mais alto, chamado Tevoawski, convida James para tomar um café.

-Você conhece esse cara?
-Sim. Vai pra casa, depois a gente se fala.

A noite eu encontro James numa praça, desolado, bebendo horrores, falava coisas desconexas, e dizia que o inferno lhe esperava, eu pergunto porque, e ele me responde com um beijo no rosto.
-Eu matei... eu matei... ninguem nunca vai me perdoar, nunca...
-Quem você matou?
-O seu Elizeu, o dono da fabrica de papel... eu matei por dinheiro... eu sou um monstro... eu sou um monstro!
E dizia essas palavras batendo em seu peito com força e pedindo piedade para o seu deus.
Uma semana depois sem ver James, eu tenho nóticia que ele estava rico, negócios...
Bem vestido, de carro, James não trabalhava mais como professor de teatro, nem namorava mais a sua namorada crente, havia abandonado a igreja com a desculpa de estar muito oculpado, mas para mim, que James confiava tanto, ele dizia que não podia ser tão hipócrita, o assassinato já pesava demais na suas costas, e eu perguntava fingindo esquecer.

-Que assassinato?
-Assassinato? Eu falei assassinato?

E riamos da nossa inapreciável hipocrisia.

-Quando eu morrer, você e o meu filho, seram meus herdeiros
-Não brinca.
-Não estou brincando, você é o meu unico e verdadeiro amigo.

E hoje, golando doses de Wisky e vendo uma cena patética de um ser humano rancoroso e triste beijando constantemente o porta retrato do filho morto, eu começo a chorar também, o meu pior lado quer se manifestar e eu não consigo segurá-lo, o aperto contra o meu peito.
As cenas do crime manifestam-se em minha mente numa forma psicodélica.

-Quer ficar rico também não quer? Você tem inveja dele.
-O que você tá falando? Não enche o saco.
-Tá esperando ele morrer pra ficar com a herança?
-Eu não sou o filho dele!
-Vai esperando então...

A ex namorada de James era todo cinismo, alma decrépita presa em um corpo sinuoso e lascivo, maquiagem bem feita, batom vermelho borrado.

-Eu sei de tudo, do crime, da cena, de cada detalhe.
-Como sabe?
-Seria um crime perfeito se o assassino não revelasse tudo no seu diário. É, um idiota, você pode se sair melhor do que ele, eu confio no teu potêncial.
-O que você quer de mim?
-Eu quero a cabeça dele, numa bandeja.
-Você quer eu mate o James?
-Não. Eu quero que você mate o filho dele. O sofrimento as vezes é pior do que a morte... Eu pago muito bem.

Era um dia bonito e fazia sol, o filho de James saía da escola com as outras crianças, acabara de lanchar um cachorro quente numa barraquinha da esquina, eu o observava de longe no opala azul emprestado, eu o matei, passei por cima da sua inofensiva cabeça, e os seus ossos despedaçaram-se.
Eu estraguei o garoto que tinha o futuro pela frente por um destino burguês.

E hoje aqui estou, com uma arma escondida na minha cintura, olhando pra James chorar pelo seu filho morto, pobre de espirito e financeiramente por baixo, cometi o crime que James cometeu e não fiquei rico, a vagabunda fugiu e me deixou com um crime nas costas e uma conciência pesada.

-Porra James, para de chorar caralho! Será que você só sabe chorar? Foda-se seu sofrimento! Acaso você pensou no sofrimento da filha do seu Elizeu?
E James chorava de soluçar...
-Eu não queria... Eu não queria...
-Tarde demais não?

Cinco tiros no peito, James cai no carpete importado ainda vivo e sangrando muito.
Hoje, voltando pra casa sozinho, eu penso em que vou comer quando chegar em casa, preparo um macarrão instantaneo, esculto The Velvet Undergroud e leio Rimbaud.
"Temos fé no veneno. Sabemos dar nossa vida inteira, todos os dias.Eis o tempo dos Assassinos"
Hoje eu sou um burguês, herança do meu velho e bom amigo James.

Um comentário:

Anônimo disse...

DEIXE SUA GORJETA E ME FAÇA BEM...